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Entrevista com Rocio Rueda

Pensar a história como possibilidade é reconhecer a educação como possibilidade. É reconhecer que, se a educação não pode tudo, pode conseguir algumas coisas... Um dos nossos desafios como educadores é descobrir o que é historicamente possível no sentido de contribuir para a transformação do mundo, levando a um mundo que seja mais redondo, menos anguloso, mais humano.

Paulo Freire. Diálogo: cultura, língua e raça

 

A escola, para Jan Maschelein, seria uma particular “organização de pessoas, tempo, espaço e interesses que constitui um meio em que as pessoas – jovens – são trazidas na companhia de outras e na companhia de algo no mundo em um modo particular, para que o mundo se abra e para que se comece a pertencer ao mundo”.[1] “Educar, defende Henry Giroux, é estabelecer que narrativas vamos produzir que permitam aos alunos alargar as suas perspectivas sobre o mundo e sobre a relação com os outros e consigo próprios”[2]. Para Marina Garcés, “educar é dar ferramentas para ler o próprio tempo e colocá-lo em relação com os que já foram e com os que estão por vir[3]”.

Na escola, o conceito fundamental não seria tanto o de aprendizagem, mas o de estudo. Estudar, diferentemente de aprender, não tem tanto a ver (ou apenas) com a aquisição de conhecimentos, competências ou habilidades, mas sim com “a formação do sujeito e com a transformação de sua relação com o mundo, ou seja, de torná-lo mais atento, cuidadoso, denso e profundo”. A tarefa dessa escola seria, então, transformar alunos em estudantes, e não tanto em aprendizes. “Promover e cultivar uma postura estudiosa em relação ao mundo, especificamente através daquela porção do mundo escolarizado que chamamos de disciplinas de estudo que, evidentemente, nada têm a ver com conteúdos a serem assimilados, com saberes ou conhecimentos a serem aprendidos ou com habilidades a serem desenvolvidas”[4]. Nesta escola, a atenção, e não tanto a motivação, seria a questão crucial. A escola nos deixa atentos. É através da educação formal e da escola que chamamos a atenção das novas gerações para o mundo. Por meio da educação formal e suas operações “as coisas começam a falar (nós)”[5] . Ir à escola é, ou deveria ser, aprender a prestar atenção. E os professores seriam, antes de tudo, professores de atenção. Sua tarefa seria chamar, sustentar, melhorar e disciplinar a atenção dos estudantes[6].

A escola é, ou deveria ser, um lugar de negociação de significados e de produção de sentidos[7] , mas o que temos percebido com crescente preocupação há anos é a ausência de sentido e o desafeto. Para muitos jovens, diz Rocío Rueda, “a universidade (creio que, apesar das diferenças, poderíamos dizer o mesmo de outras etapas educativas) não lhes oferece um espaço para encontrar sentido nos projetos de vida”. Uma desilusão/descontentamento decorrente da aparente incapacidade dos sistemas de educação formal em ajudar os jovens a ler e a dar sentido ao mundo (o seu mundo e o mundo que os rodeia). Uma falta de sentido que parece ocorrer quando a escola deixa de funcionar como escola no sentido estabelecido por Maschelein e Simons [8].. Quando não damos atenção a eles e quando abrimos mão da tarefa de torná-los atentos.

Se não conseguirmos um mundo em que todos caibamos, em que a natureza tenha direitos — como diriam os de bem viver —, onde se respeite a natureza, onde se respeite o ambiente material, não nos restará escola nem nada mais.

Esta crescente falta de sentido surge, paradoxalmente, após décadas de discurso insistente para fazer da escola um lugar orientado para a prática e a utilidade, e torná-la um lugar de aquisição e produção. Surge depois de anos de questionamento da escola, acusada de ser uma instituição profundamente e cada vez mais desligada da vida, dos interesses dos alunos e das necessidades do mercado. E depois das sucessivas tentativas de reformulação de currículos, orientações, metodologias, práticas e identidades.

Para Rocío Rueda, parte do desencanto dos jovens vem justamente de “uma força excessiva de todo aquele discurso que tem a ver com a produção, com o ser produtivo, eficiente, eficaz, com a profissionalização dos professores, no sentido capitalista mais rigoroso (produzir e publicar para que os títulos sejam reconhecidos, para estar nos rankings e para a universidade se manter como a melhor universidade de excelência), e com tudo o que isso significa. Estamos tão focados em aparecer nesses rankings de excelência e qualidade educacional que estamos cada vez mais distantes dos nossos estudantes.” Paramos de prestar atenção neles. De alguma forma, o discurso da performatividade, eficácia, eficiência, aprendizagem e melhoria do desempenho escolar apenas aprofundou a lacuna de significado.

A escola, escreveu também Rocío Rueda na linha da pedagogia crítica, seria o lugar onde, além de negociar significados e sentidos, “os estudantes são formados para questionar os modos atuais de produção de conhecimento, inclusive os da própria instituição educacional, e, especificamente, dos mecanismos de certificação social dos saberes produzidos e das relações de poder neles imbuídos.[9] “A educação escolar faria sentido desde que nos ajudasse a elaborar representações alternativas às hegemônicas. “Não basta formar gerações competentes num ambiente cultural e tecnológico em mutação”, deve também “estar orientada para a geração de pensamento crítico capaz de tomar decisões e de resistência proativa às imposições.[10]

Por isso é impossível que a educação seja neutra. Para Giroux, “quem defende que deve ser está dizendo que ninguém deve ser responsabilizado por isso, que as pessoas que produzem essa forma de educação se tornam invisíveis quando dizem que ela é neutra. Portanto, você não pode identificar os processos ideológicos, políticos, de poder. É isso mesmo que eles querem, porque, nas suas piores formas, o poder torna-se invisível, e a noção de que a educação é neutra é uma forma de tornar invisíveis as pessoas que têm poder para que não possamos identificar a propaganda[11]”.

Se o nosso compromisso educacional não for para os que estão fora, para os invisíveis, para os que não tiveram voz, não sei para o que é.

Repensando o sentido da escola, há três áreas sobre as quais Rocío Rueda nos convida a nos posicionar e que implicam repensar uma tríplice relação com os outros, com o planeta e com o conhecimento.

Em primeiro lugar, reconhecer a necessidade de incorporar todos os saberes tradicionalmente excluídos da escola. Todos os saberes ignorados, minoritários e fronteiriços que nunca foram valorizados e ficaram fora dos nossos currículos. Se queremos dar sentido à escola, devemos “reconhecer essas outras formas de saber que existem em nossas comunidades”, diz Rocío Rueda. Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, precisamos nos munir de epistemologias do Sul para lutar contra o epistemicídio [12] do conhecimento gerado pelas epistemologias dominantes do Norte (nem Norte nem Sul são referências geográficas para Sousa Santos), e que têm contribuído para o conhecimento científico desenvolvido no Norte a forma hegemônica de representar o mundo[13]. Com base nessa lógica, o conhecimento dominante impede todos aqueles que permanecem do outro lado da chamada linha abissal de representar o mundo como seu e em seus próprios termos[14] (a separação entre sociedades metropolitanas ou do norte e sociedades coloniais ou do sul). Ou, dito de outra forma, é essa linha abissal que estaria atuando como uma fronteira de sentido para muitas crianças e jovens dentro da escola. Saberes e práticas escolares canônicas não estariam fornecendo a muitos jovens as ferramentas que lhes permitissem conhecer, interpretar e agir sobre os seus mundos (insistimos, não é apenas uma linha geográfica ou desenvolvimento econômico. O Norte está cheio de Suis).

A situação é complexa e nos coloca diante de um duplo desafio, diz Rocío Rueda: “por um lado, existe esse conhecimento que, claro, devemos reconhecer, mas, por outro lado, isso não significa que devamos descartar a cultura universal que construímos. Isso significa que não é apenas importante reconhecer esse conhecimento, creio que temos que pensar justamente nessa ideia de cidadãos do mundo.” A tensão surge diante de um duplo desafio: “formar sujeitos que sejam cidadãos do mundo e que, portanto, sejam capazes de falar com o mundo em nível global, mas, por outro lado, temos o desafio de fazer o reconhecimento desses saberes que ficaram de fora.” Paulo Freire dizia: se o nosso compromisso educacional não for para os que estiveram fora, para os invisíveis, para os que não tiveram voz, não sei para o que é.

 

Uma segunda área, ligada à anterior, tem a ver com a nossa relação com o mundo. Com “como colocamos em diálogo esses conhecimentos e saberes, essas epistemologias e essas antologias, essas visões de mundo, para ver como transformamos a maneira como nos relacionamos com o mundo”. “O desafio que enfrentamos diante dos problemas que nosso planeta tem neste momento é um desafio muito forte da escola de educar para transformar essas formas como nos relacionamos com a natureza, com os outros seres humanos, com o mundo que nos cerca.” “Se não conseguirmos um mundo no qual todos caibamos, no qual a natureza tenha direitos — como diriam os mais afortunados —, onde a natureza seja respeitada, onde se respeite o ambiente material, não nos vai restar nem escola nem nada.”

Em terceiro lugar, parece cada vez mais urgente abordar a dupla face (como desafio e como oportunidade) que as tecnologias apresentam na educação. As tecnologias são remédio e veneno ao mesmo tempo, nos diz Rocío Rueda, trazendo à tona a imagem do efeito pharmakon de Platão em seu Fedro. O risco que aponta e que se relaciona com o sentido da escola é que com as tecnologias atuais caiamos “numa única forma escritural”, e no empobrecimento de “outras formas de expressão e, com ela, outras culturas, outras formas de ver o mundo”. O risco é cairmos no perigo de aceitar uma única história. Que não sejamos capazes de dar aos jovens ferramentas para questionar o sentido hegemônico de um único discurso.

 

Carlos Magro

@c_magro

[1] Masschelein, J. (2019). La escuela como práctica y tecnología de la pertenencia al mundo (Trad. B. A. Morantes,
& J. G. Díaz). Praxis & Saber, 10(24), 387-399. https://doi.org/10.19053/22160159.v10.n24.2019.10034
[2] Giroux, H. (02/07/019): Defender que la educación tiene que ser neutral es decir que nadie debe rendir cuentas de ella. http://lab.cccb.org/es/henry-giroux-defender-que-la-educacion-tiene-que-ser-neutral-es-decir-que-nadie-debe-rendir-cuentas-de-ella/
[3] Garcés, M. (2020). Escuela de apéndices. Barcelona: Galaxia Gutenberg. p. 153
[4] Larrosa Bondía, J. (2019). Vindicación del estudio como concepto educativo: a propósito de aprender/estudiar una lengua. Teri. 31, 2, jul-dic, 2019, pp. 131-151http://dx.doi.org/10.14201/teri.20524
[5] Masschelein, J. (2019). La escuela como práctica y tecnología de la pertenencia al mundo (Trad. B. A. Morantes,
& J. G. Díaz). Praxis & Saber, 10(24), 387-399. https://doi.org/10.19053/22160159.v10.n24.2019.10034
[6] Larrosa, J.  (2019). Esperando no se sabe qué. Sobre el oficio de profesor. Barcelona: Candaya. p.190
[7] Pascual Barrio, B. y Rueda Ortiz, R. Sociedad red: cultura, tecnología y pedagogía crítica. Disponible en https://www.uv.es/~jbeltran/ase/textos/pascual.pdf
[8] Masschelein, J. y Simons M. (2014). Defensa de la escuela. Una cuestión pública. Buenos Aires, Miño & Dávila, febrero 2014
[9] Pascual Barrio, B. y Rueda Ortiz, R. Sociedad red: cultura, tecnología y pedagogía crítica. Disponible en https://www.uv.es/~jbeltran/ase/textos/pascual.pdf
[10] Pascual Barrio, B. y Rueda Ortiz, R. Sociedad red: cultura, tecnología y pedagogía crítica. Disponible en https://www.uv.es/~jbeltran/ase/textos/pascual.pdf
[11] Giroux, H. (02/07/019): Defender que la educación tiene que ser neutral es decir que nadie debe rendir cuentas de ella. http://lab.cccb.org/es/henry-giroux-defender-que-la-educacion-tiene-que-ser-neutral-es-decir-que-nadie-debe-rendir-cuentas-de-ella/
[12] Sousa Santos, B (2017). Justicia entre saberes: epistemologías del Sur contra el epistemicidio. Madrid: Morata.
[13] Sousa Santos, B. (2019). El fin del imperio cognitivo. La afirmación de las epistemologías del Sur. Madrid: Trotta. p.28
[14] Sousa Santos, B. (2019). El fin del imperio cognitivo. La afirmación de las epistemologías del Sur. Madrid: Trotta. p.29

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